domingo, 31 de julho de 2016

24

senti aqueles olhos cravados no meu rosto tal como na noite anterior quando, sentada num canto do quintal, fiquei fixada na maneira como o fogo consome o papel e como, em tão pouco tempo, tudo vira cinzas.
dei por mim a pensar que seria óptimo fazer o mesmo com as memórias, deixá-las apagarem-se, ainda que lentamente, para não mais ressurgirem. afogá-las para que não haja uma réstia de existência, para que não nos recordemos do passado quando nos sentamos sozinhos num canto do quintal.
na realidade nunca estamos sozinhos. o animal desconfiado que nunca se aproxima é capaz de nos vir fazer companhia. o plim do telemóvel lembra-nos daquilo que íamos escrever e do que entretanto apagámos. os risos na sala chamam-nos para outro lado de nós que está apagado. o álcool bem tenta reacendê-lo, enquanto desce furiosamente pela garganta.
e de manhã, as vozes da mãe e do filho soam a papagaios irritantes que reagem automaticamente a palavras-chave e a códigos familiares incompreensíveis, o cheiro do pequeno-almoço invade a cozinha e eu peço cinco minutos de descanso para um corpo que precisava de muito mais que isso.
e embora me volte a sentar sozinha num canto do quintal e pense com clareza sobre tudo o que fiz e disse nas últimas vinte e quatro horas, não consigo descobrir a paz. fico a desejar que o fogo me consuma e me torne cinza, porque parte de mim é memória. e talvez recomece de novo, como o barro nas mãos do oleiro.
por enquanto sou uma carta fora do baralho mas serei dama de copas, e se tudo correr bem, serei rainha como tu um dia. topas?



Sem comentários: