terça-feira, 29 de maio de 2018

29 de maio

o nó na garganta não desapareceu. tu nunca soubeste da minha inveja, como me magoava o teu à-vontade com os outros, a forma como ias beber café e assistir a peças, e falavas com as pessoas sem barreiras - pelo menos, sem as barreiras que me impuseste -, e eu ficava ciumenta e confusa com as tuas palavras. dizias que te querias proteger, mesmo antes de nos magoarmos. querias proteger-te de mim, porque rapidamente eliminavas a protecção com outros. deste ponto de partida, onde tu não te importavas assim tanto comigo - tu mesma apontaste que tinhas mais com quem te preocupar -, desmoronei-me. aos poucos fui castigando-me por confiar tanto em quem não conhecia, por gostar tanto de alguém que não conhecia, por não conseguir afastar-me de alguém que não conhecia. essencialmente repreendia-me por ter uma amizade através de um écrã. que tontice, pensava para mim. que falhanço só conseguir dizer o que anda práqui a corroer, escondida, sem expressão, a alguém que me vai respondendo, graças a todos os santinhos.

não vou negar que estes pensamentos - e a mágoa que me consumiu durante algum tempo - deambulam por aqui, por esta casa desorganizada. por vezes esbarro com estas coisas. tento não dedicar muito tempo a elas, por mais que me queira proteger. quero resguardar-me sim, mas não à custa de te transformar num monstro, numa construção mal enjeitada de mágoa e lágrimas que não sei se és. virtual ou físico, com mais ou menos expressão, resta-me a certeza que sempre tive: todas as tuas palavras me desequilibram, colocam-me à beira da mais insuportável e fiel ternura e, nalguns momentos breves, da mais profunda desilusão.
e é à beira da ternura, lendo os livros que me vais sugerindo, que escrevo estas palavras, na esperança de não deixar os meus defeitos envenenarem a tua imagem, e ficar grata pela amizade que dedicas, e de me lembrar, quando estiver da outra beira, que não sou senão uma formiga minúscula e insignificante na tua vida.


Etty Hillesum




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